quarta-feira, 1 de julho de 2009

No intervalo do show

Pois é, seu moço, eu tive um amor. Eu amei uma moça linda, loira de olhos verdes e cabelos cacheados. Áurea era o nome dela. Foi uma paixão linda, daquelas que se consomem de fio a pavio.

Conhecemo-nos por acaso, na casa de uns amigos. Todos contentes, aprovação das três filhas do anfitrião para estudar no Liceu, e eu vi a moça ali, de rosto liso, de cabelo lavado, de perfume de verão. A brisa lhe movia os cabelos de caracol, a boca carnuda balbuciava qualquer coisa que não me interessava; pouco lembro, meu filho, o tempo apaga o que não é importante para que a gente se lembre do que precisa, né?

Qualquer coisa que ela me dissesse, se fosse para mim, seria importante. Mas achei que nada que eu dissesse seria importante para ela: o que uma moça nova e bonita iria querer comigo? Na época, eu era guarda-livros – profissão odiosa, aquela – e ela devia fazer algo importante; sei lá, professora, talvez.

Pois se não era professora, deveria sê-lo. Tinha pinta de professora. Com um nariz bem afilado e um óculos redondo, bem pequenininho, de metal dourado – porque antigamente não era como hoje, que tem óculos de tudo que é jeito; eu lembro quando eu fui levar minha guria pra aviar os primeiros óculos dela, ou era um óculos de metal (que ela achava cafona, mas eu gostava), ou era de um plástico preto (acho que era um tal de acetato, que meu guri dizia que era “pra frente” usar óculos de matéria plástica).

Dançamos de par, ela e eu, naquele jantar. Pobrezinha, ela estava envergonhada com a saia dela, que amassou; dizia-se menina arteira, dessas que ficam saracoteando por aí. Eu, todo aprumado, tirei a moça. Foi a minha glória. Como estava toda nervosa por causa da saia de linho, eu prometi para ela que eu imaginaria que ela era uma princesa de um reino qualquer, mas que tinha pedido uma saia emprestada para uma prima e que, no afã de logo chegar àquele baile, acabou não se dando conta; mas que tava amarfanhada, tava, bixo, tava toda ruim, parecia que um boi tinha mascado aquela saia.

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Não, guri, nunca mais a vi, mas aquela noite foi linda. Ela sabia que eu nunca mais a veria, eu também sabia que era a única vez que trocaríamos olhares, mas eu não dava bola pra isso, nem ela, nem ninguém. Ninguém dava bola.

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Não, a gente não fazia nada com as moças antes de casar. Ou se era honesto, ou não, já dizia meu finado pai, que Deus o tenha em Sua glória. Mulher era pra casar ou pra farrear. Nunca fui de farra. Então, aproveitei tudo o que pude naquela noite, naquela sala, naquele jantar, naquela dança.

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Eu olhei bem nos fundos dos olhos dela. Disse para ela, só com o olhar, “eu te desejo”. Ela me respondeu com as bochechas, bem rosadas, que me disseram “eu gosto disso”. Depois daquela primeira troca de olhares, não falamos mais nada.

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Foi bom, foi muito bom. Tivemos uma viagem a dois, uma noite mágica, de carinho, de ternura, de enlevo. Ela dançava como poucas mulheres que vi – e olha que já dancei um bocado; antes das minhas primas casarem, eu era o par delas, porque meu tio era muito bravo e me pagava pra ir nos bailes com a Henriqueta, a Aurélia e a Carmem Lúcia, as filhas dele, e eu gostava, claro, porque ganhava dinheiro só pra ir lá, botar banca e enxotar os moleques que ficavam na volta; claro que eu deixava os caras darem uma olhada, dançarem um pouco com elas, mas nunca deixei que se passassem com elas, nunca, até porque se eu deixasse, meu pai me daria uma coça que eu nunca mais esqueceria e não filaria mais essa boquinha de ganhar pra ir nos bailes. Tinha que ser malandro antigamente.

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Relação? Que é isso, comandante? Isso é papo de careta. A gente aproveitava, se olhava, se amava assim; e era bom, me fazia bem, me deixava com o coração cheio e enchia o coração das moças. Isso podia. Não era pecado, e eu sei que não era porque eu perguntei pro Padre Vitório, meu confessor, o padre da capelinha do lado da casa do Seu Fidélio, que era muito amigo do meu avô; eu disse pro Padre Vitório que eu olhava bem no fundo dos olhos das garotas e tentava enxergar o olhar delas, porque eu queria encontrar aquela que quisesse, lá no fundo do olhar, encontrar alguém como eu.

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Achei, sim, e fui muito feliz com ela, mas eu te conto outra hora, tá? Tu não me leves a mal, mas eu tenho que continuar a apresentação; sabe como é baile de velho: todo mundo tem que sair cedo pra ir dormir logo e não ficar com arritmia, pra tomar remédio da pressão, pros filhos não ficarem enchendo o saco e deixarem o povo sair, essas coisas. E eu não posso falar muito, não cozinho na primeira fervura, e se eu ficar falando muito aqui, a voz se cansa. Então, meu amigo, nós nos encontramos num outro baile da vida. Até mais. Vou te dedicar, a ti e à Áurea, o primeiro bolero de agora.

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Senhoras e senhores, a boa música recomeça, lembrando dos amores que tivemos; mando essa canção ao meu amiguinho, guri, que nos prestigia hoje, e a um amor que tive, desses que só conhece quem sabe o frio da barriga do cortejar:

Nadie comprende lo que sufro yo...

5 comentários:

Teresinha disse...

Quem é esse ancião que viaja no tempo com tanta poesia? Hehehe!

SGi/Sonia disse...

Que lindo isso viu?

Eu vivo em crise, se não há uma real viajo numa inventada, produzo melhor assim.
Mas a sua é bem preocupante e que diz respeito a sua profissão escolhida e estudada por você. Mas passa.

Quanto as suas "sandices" é claro que quero saber, talvez assim eu me sinta menos maluca, porque lá no blog só coloco as publicáveis:)hahhahaha

Beijins:*

Lúcia disse...

E o rapaz continua no ritmo!! rsrrs
Bjins

Marcela Isabel Silveira CRN2: 9531 disse...

Olá gostei do comentario lá no Blog..
hehehehe
Amei o texto, tudo era diferente naquela epoca.
beijuss

Chris disse...

Ja chegou com tudo hein!!
Bem vindo de volta!
As epocas mudam, mas carater sempre sera carater. Ainda acredito que exitam homens bons! =]

bjks