terça-feira, 19 de junho de 2012

Nunca


Nunca tentei dissuadir quem tivesse convicções arraigadas.

Nunca me aproximei de mulher que pertencesse a outro homem. Ao contrário, inclinei-me sempre por mulher que não pertencesse a ninguém.

Nunca fiz dívida que não pudesse pagar. E, quando por momentos não pude pagar determinadas dívidas, não dormia à noite enquanto não pudesse saldá-las. Por sinal, nunca concordei com aquela máxima mau-caráter de que quem tem de se preocupar com a dívida é o credor e não o devedor.

Nunca cobrei dívida de quem me tivesse caloteado se ela fosse pequena. Fingi sempre que tinha esquecido.

Nunca gostei de dizer “adeus”, sempre substituí esta palavra por “até breve”, até mesmo quando quem partiu tinha morrido.

Nunca em toda a minha vida guardei mais que dois segredos. Ainda os guardo e suponho que os guardarei até a morte.

Nunca cometi calúnia (atribuir a autoria de crime inexistente a outrem). Mas já cometi difamação, do que sempre acabei me arrependendo. Ainda na segunda-feira passada, difamei alguém no microfone em resposta a uma agressão injustificável que sofri num debate, uma espécie de legítima defesa.

Nunca dei mais que duas palmadas em filhos meus pequenos. Já meu pai nunca me deu menos que duas violentas bofetadas.

Nunca tive inveja de amigo meu. Já ciúme de amigo meu que se aproximava mais de outrem que de mim, tive-o mais de mil vezes.

Nunca invadi chácara alheia, quando eu era criança, se as bergamotas lá existentes fossem verdes. Já quando as bergamotas eram maduras, eu invadia mais que o MST.

Nunca recusei um enfrentamento pessoal. Fui admiravelmente corajoso em alguns, miseravelmente covarde em outros, dependendo do tamanho ou do poder de fogo dos meus antagonistas.

Nunca deixei de comprar brigas e já fugi de muita briga. Quando comprei briga, não calculei nada. Quando fugi de briga, fui estratego.

Já chorei de dor e já chorei de alegria. Gozado, mas nunca consegui sorrir de sofrimento ou na derrota.

Nunca serei rico a ponto de me julgar poderoso, mas sempre me considerei na pobreza como um súdito.

(texto do Paulo Sant'Ana, publicado na Zero Hora de 17 de maio de 2012)