Entre a balança e a espada
Há duas “versões” para se retratar a guardiã da justiça: uma é a deusa latina Iustitia, que tem os olhos vendados e empunha com ambas as mãos o gládio sagaz e pronto para o uso; para ela, a simples arguição dos problemas levaria à solução; escreveu, não leu, o pau comeu era o pensamento romano, e a retórica e a erística seriam as artes que conduziriam o julgador. E era isso: os reclamantes se postariam perante o juiz, desfiariam suas ladainhas e ele diria o que sentia do caso (e daí vem a palavra sentença, que vem de sententia / sentire). Pronto. Dura lex, sed lex. A lei é dura, mas é a lei. O outro modo de apresentar a protetora divinal é como Diké, a grega, que tem consigo um par de pratos de uma balança desnivelada e uma espada apontando para o chão, e contrariamente à maninha mais nova, os olhos estão muito bem abertos; não é impulsiva, mas coloca tudo na sua libra, e aguarda até que o fiel da balança chegue ao centro: se Iustitia procura quem tem mais razão, Diké procura equalizar as coisas que lhe vêm às vistas para, depois disso, usar da arma como coerção ao seu imperativo. Não é à-toa que Aristóteles pregava uma igualdade no conteúdo, e não apenas na forma, dando o igual aos iguais e o desigual aos desiguais, segundo a medida de suas desigualdades.
Todo operador do Direito tem uma vocação para “paladino da justiça”. Eu não me escapo disso. Penso nas poucas-vergonhas que o mundo expõe e penso que se devem exterminar todas as contrariedades ao cumpra-se da lei. Mas nem sempre é tão simples assim.
Exponho um caso bem simples e direto. No centro da cidade, é comum encontrar indiozinhos cantando e batendo violão; mendigando, em resumo, pois não creio que seja uma manifestação cultural o fato de passarem o dia ali, brincando com cavacos e gravetos, com as mãos estendidas aos transeuntes em formato de conchas, nada falando e tudo dizendo. Enfim, há filhotes dos habitantes nativos da Pindorama na calçada em que caminho. Ali estamos, eles e eu.
Se fossem meros filhotes, bichinhos indefesos, bastaria reclamar à Sociedade Protetora dos Animais. Ó, tem um bichinho ali, e pronto, recolhe-se o animal. Poderíamos chamar o pessoal encarregado pela prevenção e erradicação de zoonoses, para que cuidássemos da criaturinha. E daí, que mais faríamos? Um mais piedoso poderia levá-lo para casa, dar comidinha e colocá-lo no retrato da família enquanto a morte não ceifasse a alegria do companheiro. Poderíamos fazer tudo isso se fossem animais; mas não são animais, são pessoas como eu, como quem lê essas linhas, como quem deve (ou deverá, ou deveria) cuidá-las.
E o que fazer com esses infantes? Anos atrás, eu mandaria tirar dos pais, pôr para adoção, prender os genitores por não usarem do poder familiar (e das condições que têm), e estufaria o peito com orgulho simiesco, dizendo cumpri o meu dever. Não consigo mais ver isso; há tantos arranjos familiares, há tantos matizes nas cores da vida, que não sei mais bem o que pensar a respeito.
Lembro que minha avó paterna contava que fazia pé-de-moleque para os guris (a saber, meu pai e meus dois tios) venderem durante os jogos de futebol de um estádio que ficava próximo de onde moravam. Eram pobres, sim, mas isso não lhes era desonroso. Meu tio e dindo, o mais empreendedor do grupo, começou a vender tangerina, laranja, alface, essas coisas, e foi fazendo o dinheirinho da família. Essa era a realidade de 40, 50 anos passados. Paro e penso nas pessoas que colocam seus filhos ao seu lado, amparando no trabalho e sendo seus grandes parceiros; acho bonito isso. Claro, é doído e lamentável não lhes facultar as condições de desenvolvimento pleno, com estudo, esporte, lazer, cultura, mas não sei se tira-los do convívio familiar e mandar ao raio-que-os-parta também é problemático.
É fácil achar respostas, difícil é perguntar honestamente. A situação entre esses pequeninos é real, concreta, líquida e certa, como eu diria na Academia; agora, a que problema eu a conduzirei? Que Deus me ajude a olhar primeiro ao direito, depois à lei, para que eu não queira a cegueira da justiça, ou só apenas o brandir do gládio para a persecução do seu mister, mas que eu olhe bem a que o fiel da balança me conduzirá. Se projetos sem ações são meras quimeras, ações sem projetos são demonstrações da pequenez humana.
Agora, não posso encerrar sem lembrar a sábia oração: Senhor, dá-me a serenidade para aceitar as coisas que não consigo mudar, coragem para mudar as que eu consigo e discernimento para diferenciá-las umas das outras. Que assim seja!
2 comentários:
Sami, Sami! Adorei seu texto! Gostei de tudo que vc falou, da Iustica, da historia e da ligacao eterna que tem com os tempos. Julgar, pensar a respeito, em solucoes, dicernir, achar a verdade sempre sera periogoso. E "Facil" estar do lado de fora, como telespectador, observando e comentando. Agora fazer, ser justo ou passar pela situacao e muito dificil MESMO! REalmente eu nao sei o que fazer com essas criancas, para ser o melhor para elas. Eu fico com meu coracao moido.
E sempre haverao consequencias. Acao leva a reacao. E super acredito no efeito borboleta, talvez o que fizermos aqui pensando ser o correto, pode interferir la no futuro. Alias, sempre ira interferir! tenho certeza!
Sabe, eu perdi minha unica irma por erro medico, na epoca falei para meu pai processar o medico, mas ele nao quis, estava muito ferido, e eu entendo, ele disse que isso e muito complicado e mexe em todas as feridas. Mas o medico acogueiro, ta ai, continuando a exercer a profissao. Mas depois pensei, sera que nos fariamos "justica" com isso?
nao sei!
bju bju
Sami, vc tinha 6 aninhos quando, numa manhã de inverno, no centro na nossa POA, parou diante de 3 menininhos que dormiam na calçada e chorando, disse, eu tenho tudo na minha casa, mas nunca vou ser completamewnte feliz enquanto houver criança dormindo desse jeito e passando fome nas ruas. Eu nunca pude esquecer disso. Sou muito suspeita em falar, mas vc é um ser humano muito especial mesmo. Deus foi muito bom comigo ao me dar os filhos que tenho. Que Deus te ajude, na carreira que escolheste, a promover um pouco de justiça num mundo de tantas desigualdades. Que me perdoem teus amigos blogueiros pela "babação", mas sou mesmo muito "coruja". Não tenho razão? Beijo, filhooo!
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