terça-feira, 16 de setembro de 2008

Um dia com minha pilcha

No interesse de honrar as tradições do povo gaúcho, investi, sábado último, em uma pilcha. Esse traje, quase que sagrado no estado sul-rio-grandense (tão reverenciado que é considerado traje formal e de honra por lei), é típica construção de povos que aqui viveram e lutaram, e, em se peleando mutuamente, deixavam parte do seu costume ao vestuário do outro.

Acordei cedo. Tomei chimarrão (o que o faço para acompanhar os outros; no Rio Grande do Sul, não tomar chimarrão é estar isolado do convívio social), acompanhei as notícias dos jornais matinais e li a gazeta. Lenço encarnado, incongruentemente guarnecido das Armas Nacionais a lhe jungir as pontas, bombacha e paletó pretos, bota e cinto em tom de couro natural, camisa branca e um cidadão a se sentir fantasiado: eis-me pronto ao meu segundo dia de trabalho na semana que antecede o Vinte de Setembro do ano de dois mil e oito de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Subia a plataforma ao metrô, de maleta em punho e em passo apressado. “Navegar é preciso”, como sempre me recordo. De repente, um cidadão me cruza o caminho, bochechas rosadas em rosto faceiro, e sou saudado com um “bom dia, gaúcho”. Parei. Que se faz diante dessa assertiva? Meu espanto se deu pelo cumprimento ou pelo fato de eu ser “reconhecido” como gaúcho? E agora, como poderei ser um bom representante da simples, porém nobre cultura do meu torrão?

Ao me sentir visto por todos (embora ninguém me lance os olhos, nem “de revesgueio”), descobri-me gaúcho, pertencente a um povo aguerrido e que nunca se acovardou diante das intempéries, fazendo uma república para fugir de um governo que reputavam injusto. Vi-me simples, um homem na cidade, e não mais um homem da cidade. Enxerguei, por trás dos óculos e no fundo dos olhos, os olhos do correeiro Simão Aguiar e do campeiro Ignácio Cabral, meus bisavós, homens que nunca duvidaram de um ideal de Liberdade, Igualdade e Humanidade, como consta no brasão farroupilha. E senti-me emocionado, como nunca outrora, pois não enxerguei Kans Kelsen, títulos de crédito ou compromissos inadimplidos, mas descobri que defendo pessoas porque as quero humanas, voltando à confiança do fio do bigode, inspirados na atávica sabedoria legada pelo Livro Sagrado, lavando a própria honra com sangue, se assim fosse o caso.

Não deixei o amigo sem resposta. Buenos dias, señor, e me fui ao batente, lidar com meus chasques.

2 comentários:

Lúcia disse...

Muito bom seu texto, mas ficou faltando uma foto do guapo Samuel todo aprumado!

Anônimo disse...

Um dia ainda vou ler um livro de "causos" contados por Samuel, o artífice das letras.
Forte abraço, na paz!
Wilson.