No interesse de honrar as tradições do povo gaúcho, investi, sábado último, em uma pilcha. Esse traje, quase que sagrado no estado sul-rio-grandense (tão reverenciado que é considerado traje formal e de honra por lei), é típica construção de povos que aqui viveram e lutaram, e, em se peleando mutuamente, deixavam parte do seu costume ao vestuário do outro.
Acordei cedo. Tomei chimarrão (o que o faço para acompanhar os outros; no Rio Grande do Sul, não tomar chimarrão é estar isolado do convívio social), acompanhei as notícias dos jornais matinais e li a gazeta. Lenço encarnado, incongruentemente guarnecido das Armas Nacionais a lhe jungir as pontas, bombacha e paletó pretos, bota e cinto em tom de couro natural, camisa branca e um cidadão a se sentir fantasiado: eis-me pronto ao meu segundo dia de trabalho na semana que antecede o Vinte de Setembro do ano de dois mil e oito de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Subia a plataforma ao metrô, de maleta em punho e em passo apressado. “Navegar é preciso”, como sempre me recordo. De repente, um cidadão me cruza o caminho, bochechas rosadas em rosto faceiro, e sou saudado com um “bom dia, gaúcho”. Parei. Que se faz diante dessa assertiva? Meu espanto se deu pelo cumprimento ou pelo fato de eu ser “reconhecido” como gaúcho? E agora, como poderei ser um bom representante da simples, porém nobre cultura do meu torrão?
Ao me sentir visto por todos (embora ninguém me lance os olhos, nem “de revesgueio”), descobri-me gaúcho, pertencente a um povo aguerrido e que nunca se acovardou diante das intempéries, fazendo uma república para fugir de um governo que reputavam injusto. Vi-me simples, um homem na cidade, e não mais um homem da cidade. Enxerguei, por trás dos óculos e no fundo dos olhos, os olhos do correeiro Simão Aguiar e do campeiro Ignácio Cabral, meus bisavós, homens que nunca duvidaram de um ideal de Liberdade, Igualdade e Humanidade, como consta no brasão farroupilha. E senti-me emocionado, como nunca outrora, pois não enxerguei Kans Kelsen, títulos de crédito ou compromissos inadimplidos, mas descobri que defendo pessoas porque as quero humanas, voltando à confiança do fio do bigode, inspirados na atávica sabedoria legada pelo Livro Sagrado, lavando a própria honra com sangue, se assim fosse o caso.
Não deixei o amigo sem resposta. Buenos dias, señor, e me fui ao batente, lidar com meus chasques.
2 comentários:
Muito bom seu texto, mas ficou faltando uma foto do guapo Samuel todo aprumado!
Um dia ainda vou ler um livro de "causos" contados por Samuel, o artífice das letras.
Forte abraço, na paz!
Wilson.
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